quinta-feira, junho 16, 2005

Um tiro pela culatra

Com 48 horas de atraso, escrevo sobre um ligeiro devaneio do João Pedro. Sendo um resmungão, às vezes exagera na dose e começa a disparatar. Foi o caso do post "Tentam fazer-nos por parvos".

Reagindo a uma série de opiniões contrárias ao elogio hipócrita que muitos fizeram ao papel histórico de Álvaro Cunhal, JPH escreve que a "Cunhal devo a liderança na luta contra a ditadura; a Soares devo a liderança na luta contra Cunhal (e a Europa e a consolidação da ideia democrática". JPH tem todo o direito de escolher como referências quem quiser. Sendo um homem de esquerda é perfeitamente natural que escolha um comunista e um socialista.
O que já é censurável, ainda por cima para um auto-denominado democrata, é dizer que aos "descendentes de Spínola e de Freitas do Amaral e de Adriano Moreira e de Manuel Monteiro e de Paulo Portas e de Avelino Ferreira Torres, etc, ninguém deve historicamente nada de relevante neste país. Nem antes do 25 de Abril nem depois. Antes alimentavam-se do orçamento de Salazar; depois esconderam-se atrás de Soares. Agora blogam".

JPH revela uma sobranceria e uma arrogância própria dos esquerdistas que consideram que a democracia se deve única e exclusivamente ao labor dos seus, como se todos os não socialistas e não comunistas fosse automaticamente salzaristas e fascistas. Para um homem de apenas 35 anos revela muitos dos tiques dos gonçalvistas e otelistas que um dia quiseram abrir o Campo Pequeno para fuzilar os contra-revolucionários encostados a uma parede.

Pior que isso: para um homem informado revela uma ignorância histórica perigosa.

Álvaro Cunhal não liderou nenhum luta contra a ditadura. Que eu saiba, nunca a oposição ao regime salazarista reconheceu o PCP como líder seja do que for. Por exemplo, alguns dos episódios mais marcantes da oposição ao regime salazarista, como as candidaturas presidenciais de Norton de Matos ou de Humberto Delgado, além das "eleições" promovidas por Marcello Caetano, nunca tiveram uma participação preponderante dos comunistas. Nelas participaram, mas não lideraram.
A oposição a Salazar teve a participação de socialistas, de republicanos, de monárquicos, de católicos, de liberais a até de conservadores. Fez-se na clandestinidade, mas também na rua, nos tribunais, nas escolas, nos quartéis, nos hospitais, etc. Dizer que o PCP era a organização oposicionista mais bem organizada, é uma coisa. Afirmar que Álvaro Cunhal foi líder da oposição do Estado Novo é um exagero e uma demagogia simplória.

Por outro lado, e este para um democrata deveria ser um ponto importante, o "modus operandi" do PCP de Álvaro Cunhal sempre foi, e ainda hoje é, essencialmente estalinista. Basta recordar os "processos de Moscovo" levados a cabo pelo partido liderado por Cunhal nos anos 50 em Portugal que resultou, num deles, na execução sumária de um destacado dirigente do PCP por alegada traição ao partido. Manuel Domingues, tido pelos seus camaradas com o "espião" da PIDE que terá levado à prisão de Cunhal e de outros dirgentes do Comité Central, foi executado pelos seus camaradas num pinhal de Belas com 4 tiros disparados a uma curtissíma distância. Resta só dizer que as acusações do PCP vieram a revelar-se erradas e infundadas.
Alguma vez o "Partido" admitiu este erro? Não.

Não sei se Álvaro Cunhal tomou conhecimento antecipado dessa execução, mas, enquanto líder de um partido que organizou tais processos sumários, Cunhal é responsável políticamente pela mesma. Não é a este homem que eu devo a democracia.

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